Uso de ideias e o direito autoral
Calvino Vieira Júnior.
Advogado especialista em Direitos Autorais e professor universitário.
Muito se fala sobre plágio e uso de ideias, sem, contudo, haver um aprofundamento sobre a questão e principalmente sobre os conceitos argumentados. Percebe-se que a utilização do termo, plágio, pleiteia qualquer possibilidade de crime ou utilização de obras e ideias, por parte que quem alega. Grande equívoco.
Nossa legislação pátria, autoral, nem mesmo faz menção sobre o termo: plágio; mencionando e conceituando, apenas: CONTRAFAÇÃO.
Importante lembrar que a mera alegação, de crime, pode gerar um grande desconforto à pessoa que acusa terceiros, sem a devida comprovação jurídica. No âmbito das artes, existe uma enxurrada de ideias e de obras que são base para a construção de novas obras. Em vários casos, mesmo quando há uso de obras de terceiros, existe liberalidade de utilização, sendo que nestes casos, necessário dar os créditos ao autor da obra. Mesmo a utilização de obras liberadas, pelo autor diretamente, através de um Creative Commons, ou caída em domínio público, exige-se os créditos. Já no caso do uso de ideias, o cenário possui características próprias.
Segundo, José de Oliveira Ascensão, em seu livro: Direito Autoral, publicado pela Renovar, a ideia não é uma obra, mas um esquema para a ação, neste sentido, jamais poderá ter tutela de Direito Autoral.
“Mas a ideia não é uma obra, é um esquema para a ação. Nunca poderá aspirar a ter tutela pelo Direito Autoral.” ( Ascensão - Direito Autoral)
No mesmo sentido segue nosso ordenamento jurídico em art. 8º de nossa Lei 9.610/98 (Lei de direitos autorais):
"Art. 8º - Não são objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei:
I - as idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais;". (grifei)
Nossa legislação, no mesmo sentido, vai além do direito autoral, abrindo possibilidades para a exploração da ideia, até mesmo pelos inventores no campo da Propriedade industrial.
"Art. 8º Não são objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei:
...
VII - o aproveitamento industrial ou comercial das ideias contidas nas obras." (grifei)
Podemos perceber que, tanto o legislador, quanto a sociedade, em grande maioria, pretendem e incentivam, a dinamização das ideias.
No caso da propriedade industrial, a não concretização da ideia, mesmo quando existe o depósito de pedido de patente, não garante ao inventor a exclusividade, podendo outro desenvolver aquela ideia, caso o idealizador não o faça em tempo legal.
Estaríamos até hoje, na idade da pedra, se o simples fato de se ter uma ideia fosse a garantia de direitos autorais e industriais.
Ideias chovem nas mentes de milhões de pessoas o tempo todo em diversas localidades no mundo todo.
O grande valor não está em ter ideias, mas sim em transformar a ideia em algo concreto útil ou prazeroso ao usuário ou ao espectador. Aqui sim vem a grande valia, tanto do artista quanto do inventor, ou seja, conseguir tirar da imaterialidade a possibilidade de uma concretização física material, ou mesmo perceptível através de ondas sonoras, como exemplo.
Outro ponto interessante é que a concretização de uma ideia, em obra de arte, não garante a exclusividade desta ideia contida na obra de arte. Neste sentido, se tomarmos como exemplo: “ Seres com poderes especiais diversos que se unem para vencer o mal.”
Ora, uma ideia básica que seria estimulo para a ação.
Afinal de contas: que obra teria esta ideia contida em seu enredo?
Senhor dos anéis? Liga da Justiça? Cavaleiros do Zodíaco? Os vingadores? Deuses gregos? Deuses Nórdicos?... dentre outros.
Além disso, é quase impossível saber da originalidade de uma ideia. Não se descarta o mérito da junção de ideias e nem mesmo pode, o artista que utilizou das ideias de outros, ser considerado como um “criminoso autoral”. A ideia em si não é a obra, mas a essência de uma obra que foi concretizada pelo trabalho sobre a ideia. Várias obras distintas poderão surgir da mesma ideia.
Neste sentido, o artista que uniu ideias, precedentes, numa nova ideia, não pode querer para si a exclusividade desta junção. Ou seja, não posso querer a propriedade e exclusividade de ideias em quaisquer momentos. O que se garante legalmente é a concretização de uma ideia em obra. No mesmo sentido, os idealizadores das ideias utilizadas por aquele artista, que fez a mescla, não podem pleitear para si, a exclusividade de suas ideias utilizadas na nova obra. Não podemos pretender, aqui, o Plágio, pois estaríamos, apenas, levantando uma bandeira sem um mastro, ou seja, sem nenhuma sustentação.
Além disso, para o campo jurídico, os verdadeiros especialistas na área, sabem que falar de Plágio é um trabalho árduo. Confunde-se demais: usurpação, contrafação, plágio, pirataria, cópia ilegal, cópia legal, obra original, utilização indevida de obras e uso de ideias. Plágio tornou-se um jargão popular que tenta atribuir um crime autoral, que não se define qual e nem mesmo de que forma. Para as pessoas, que normalmente utilizam do termo, sem conhecimento jurídico, “tudo é plágio”. Ponto preocupante no campo artístico e que merece um trabalho próprio, o que não é a intenção agora.
O importante, aqui, é saber que a utilização de ideias, não concretizadas em obras, ou mesmo contidas em obra já concretizadas, não configura nenhum crime.
Vejamos uma situação: dois compositores tiveram a ideia de compor uma música para uma garota, linda na visão deles, que caminhava nas calçadas e na praia de uma determinada cidade. Fizeram a música e chamaram-na de “Garota de Ipanema”.
Lógico que esta obra concretizada, será protegida pelos direitos autorais, mas e a ideia?
A ideia “uma garota andando pelas calçadas e pela praia” poderá, livremente ser utilizada para novas composições e por compositores diversos. Não precisa de autorização e nem mesmo há o cometimento de qualquer crime.
Não podemos confundir o uso da ideia com a cópia de partes da obra ou da obra na integra, para constituir nova obra. No mesmo sentido, não podemos confundir o uso da ideia para tentar criar uma obra, similar àquela, mascarando a intenção da cópia.
Obs.: Lembrar que o uso da obra significa a utilização da obra concretizada, mesmo sem qualquer alteração e citando os autores. Uma coisa é usar a obra, o que pode gerar pagamento de royalties, de acordo com a legislação de cada estado soberano, outra coisa é o uso da ideia, que é livre.
Retomando, a situação da “garota de Ipanema”, se houvesse a utilização de trechos da obra, de uma determinada sequência de compassos que vislumbrem a obra primeira, ou mesmo utilização de partes do poema que integra a obra musical, estaríamos diante de uma possibilidade de crime autoral, que deverá ser discutido em vias judiciais, com a apresentação de perícia técnica. A acusação descabida e sem fundamentos, enseja num crime de CALÚNIA, por parte do acusador, o que, dependendo dos adjetivos utilizados, pode desencadear a INJÚRIA e a DIFAMAÇÃO.
No campo das HQs, o cenário se complica ainda mais, pois além da ideia, tem se o argumento, o roteiro, a montagem da arte sequencial, os personagens, a caracterização dos personagens, a personalidade do personagem, o traço do ilustrador, o cenário, a colorização, enfim..., uma junção de várias expressões, o que daria a caracterização de uma OBRA COMPÓSITA.
Ou seja, uma OBRA COMPÓSITA seria uma obra composta por várias criações, dando resultado numa obra coesa, que pode ser totalmente feita por um único artista, ou vários.
Obra, esta, que não se confunde com OBRA COLETIVA. No caso da OBRA COLETIVA, seria a coletânea de várias outras obras, organizadas num único objeto de fixação. Esta obra coletiva nada mais seria do que várias obras, independentes, unidas num único suporte, sendo que a utilização em separado das obras selecionadas em nada prejudicaria ou descaracterizaria a obra coletiva, como exemplo: Um livro com vários artigos sobre direitos autorais, sendo cada artigo de um autor. Imaginemos o caso de uma revista que une vários HQs numa única publicação. Neste caso teríamos a revista como OBRA COLETIVA e cada HQ como OBRA COMPÓSITA.
Ora, se um artista resolve elaborar sua própria OBRA COMPÓSITA, no caso HQ, aproveitando da ideia de uma outra HQ, mas contudo copiar partes do roteiro, mantém a montagem sequencial idêntica, o traço do ilustrador, a história, os personagens de forma muito semelhante, aí poderemos estar diante um crime autoral, que dependerá de vias judiciais próprias para a análise do litígio.
Mas, por outro lado, se um artista aproveita a ideia de um personagem ou a ideia da história em si, mas desenvolve o seu próprio roteiro, sua própria caracterização artística do personagem, cenários, sequência, enfim..., não fere qualquer direito autoral. Importante frisar, que no caso do personagem, atributos e condições específicas não podem ser considerados como caracterização exclusiva de quem primeiro idealizou o personagem.
Vejamos! Imaginemos a ideia de criar um personagem cego, com habilidades extra sensórias, capacidade física e grande habilidade de luta, que consegue vencer uma fera noturna que tenha visão no escuro. Ora, para o herói cego, a escuridão em nada modifica sua condição, deixando a fera sem sua grande vantagem visual. Neste caso, se um artista cria sua HQ sendo que posteriormente, outros artistas utilizam desta ideia e criam suas próprias obras com características artísticas próprias, em nada ferem, estes, quaisquer direitos daquele.
Pontos interessante sobre a análise da ideias de heróis e histórias aqui apresentadas:
1 – o idealizador nada mais fez que unir ideias antecedentes;
2 – heróis cegos existem vários;
3 – feras com visão noturna existem aos milhões;
4 – o bem vencer o mal, é de praxe no mundo das artes sequenciais;
Qual a nova ideia?
Apenas a junção de outras ideias.
Qual o grande e valoroso trabalho?
A concretização da ideia em obra de arte. Neste momento surge o direito autoral, ou seja, tutelar a obra de arte para que não seja utilizada indevidamente.
É neste sentido que se posiciona não só o direito, mas o cientista jurídico e o mundo das artes. A pretensão é valorizar o trabalho intelectual e físico do artista que consegue, não só interpretar o mundo imaginário e real, para uma expressão artística, mas também demonstrar a sua visão e forma característica específica da sua condição de arte.
Tanto o direito, quanto toda sociedade, almejam, cada vez mais, expressões pessoais que caracterizem o artista em si, mesmo que as ideias sejam as mesmas, semelhantes, ou mescladas.
O que se pretende é ampliar mais a concretização de obras artísticas e não o cerceamento da criação através da exclusividade de uma ideia.
Se os artistas vivessem no mundo das ideias, talvez estariam acorrentados até hoje dentro de uma caverna. (Platão - Mito da Caverna)
O direito não pode e não garante, ao idealizador, o cercear das invenções e das artes, pelo simples fato de ter uma ideia, concretizando ou não em uma obra.
Se realmente a ideia fosse passível de tutela jurídica, talvez, até hoje, teríamos apenas um filme de seres extra terrestres invadindo a Terra. Ou por outro lado, teríamos um trilionário que teve a ideia e nada mais precisou fazer, a não ser a liberação do uso da ideia.